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Maior Risco para o Ceará (Afonso)

O maior risco para o Ceará é que o rigor técnico pode não ser reconhecido’, diz pai da Lei Responsabilidade Fiscal publicado por O Povo (7/2020).

Considerado o pai da Lei de Responsabilidade Fiscal, José Roberto Afonso analisa também os impactos da pandemia na economia do País Por Irna Cavalcante

José Roberto Rodrigues Afonso é considerado o pai da Lei de Responsabilidade Fiscal

Primeiro reverter a depressão para depois avaliar a política fiscal. O parecer é do economista e professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), José Roberto Afonso, considerado “pai” da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), um marco na contabilidade pública brasileira. A lei completa 20 anos neste ano. Em entrevista ao O POVO, ele faz uma análise dos impactos da pandemia na economia e diz que o Brasil se tornou parâmetro mundial do que não se fazer neste cenário. Para ele, a conta virá cara: em vidas e em recursos.

“A ciência das finanças foi abandonada e no seu lugar medidas estão sendo adotadas sem o menor rigor técnico. O socorro virou uma grande transferência voluntária em que o Governo Federal transfere para quem quer e não para quem realmente precisa”.

E alerta que, o Ceará, reconhecido por prezar o rigor fiscal, pode ser o estado mais prejudicado. “Nenhum estado, por mais bem gerido que seja, consegue superar uma depressão sem ajuda do Governo Federal, porque só esse pode se endividar fortemente neste momento. O maior risco para o Ceará é que o rigor técnico de sua gestão pode não ser reconhecido pelo critério político e discricionário que o Governo Federal adotou na distribuição do socorro sem se ater as efetivas perdas de receita”.

O POVO – Com a pandemia, o rigor fiscal das contas públicas acabou ficando em segundo plano em função da defesa da vida. Inclusive, com o acionamento do regime de exceção previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Qual o momento de retomar este rigor?

José Roberto Afonso – A LRF já prevê suspensão de algumas regras, como limite de despesa de pessoal e de dívida, enquanto durar uma calamidade e enquanto a economia crescer abaixo de 1% (não há o que se falar em controle).

OP – Dados divulgados pela Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado mostrou que os gastos para minimizar a crise provocada pela pandemia da Covid-19 e a perda de receitas com a desaceleração da economia levarão União, estados e municípios a registrar um rombo de R$ 912,4 bilhões em 2020. A dívida pública bruta vai ultrapassar 90% do PIB e já há aqueles que consideram que esta relação deve passar de 100%. Como o senhor avalia este contexto e qual o caminho para trazer as contas de volta ao eixo?

José Roberto Afonso – O mais grave é que o denominador não para de cair e, por si só, isso já levaria a aumentar a razão dívida/PIB, mesmo que gasto ou dívida não crescessem. Enquanto não revertemos a depressão nem há o que avaliar na política fiscal. Seria o mesmo que discutir quando o paciente sairá do hospital, se ele sequer conseguiu sair da UTI para voltar para um quarto.

OP – Quando o senhor diz que a própria LRF já prevê suspensão de algumas regras enquanto a economia crescer abaixo de 1%, e que enquanto não revertemos a depressão nem há o que avaliar na política fiscal, isso quer dizer que não há espaço para cortes nos gastos públicos ou outras medidas de ajustes fiscais enquanto a economia não voltar a crescer organicamente?

José Roberto Afonso – Cortes de gastos podem e devem ser feitos independentes da LRF. Esta lei dita apenas os casos em que cortes se tornam obrigatórios, quando a dívida extrapolou o teto, quando a economia não está em recessão. Na depressão, como vivemos, por maior que seja a desconfiança do governo ela é muito menor do que a nutrida pelo resto do setor privado. Tanto que a dívida pública já cresceu muito mais que o gasto público. Melhor caminho para reativar a economia será transformar o aumento de dívida pública em privada.

OP – O senhor consegue enxergar algum paralelo na história sobre situação semelhante a que a economia brasileira e mundial passa agora?

José Roberto Afonso – Nunca. É uma guerra realmente mundial. Na economia, se afetou tanto demanda, quanto oferta, caíram fluxos como subiram estoques. E, controlada a pandemia, certamente estaremos em um novo normal.

OP – O que seria esta nova condição da economia e das contas públicas?

José Roberto Afonso – Os impostos tenderão a ser cobrados mais sobre negócios digitais do que presenciais. A gestão pública deverá ser o mais informatizada possível para se fazer mais com menos recursos.

OP – O senhor vem defendendo a adoção de uma meta de dívida pública associada a um limite mais flexível para as despesas. Como isso funcionaria na prática?

José Roberto Afonso – Importante mostrar que, no longo prazo, se terá uma dívida pública inferior à atual e que se traçará uma trajetória a ser perseguida, depois de superada calamidade e depressão. A imensa maioria controla dívida e não o gasto, ou, quando age sobre este, está vinculado àquele. Fora isso, há isonomia federativa. Governo Federal nunca se submeteu a um limite de dívida e muito menos aos rigores que ele cobra dos governos estaduais e municipais.

OP – Acredita que haverá mudanças na lei do teto dos gastos?

José Roberto Afonso – Acredito que todas as regras fiscais serão repensadas. Se caminhamos para um novo normal para economia e para sociedade, não há porque se ater a normas construídas para um passado que não se repete.

OP – O que o senhor quer dizer quando afirma que “todas as regras fiscais serão repensadas”? Que tipo de mudanças se fazem necessárias?

José Roberto Afonso – A começar, novas regras de saúde precisarão ser adotadas, obviamente para evitar novas pandemias. A educação será cada vez mais a distância e menos presencial. A segurança pública exigirá muito mais inteligência do que apenas ação policial na rua.

OP – Como o senhor vê a gestão do Tesouro Nacional com a saída de Mansueto de Almeida?

José Roberto Afonso – Gestão profissional e equilibrada. A Secretaria do Tesouro Nacional é das corporações mais qualificadas do governo.

OP – Nos últimos 30 anos o Ceará vem se destacando no cenário brasileiro justamente pelo rigor fiscal dos sucessivos governos. Na contramão da maioria dos estados, não houve atraso no pagamento do funcionalismo, por exemplo. Em que medida, a pandemia coloca isso em risco?

José Roberto Afonso – Nenhum estado, por mais bem gerido que seja, consegue superar uma depressão sem ajuda do Governo Federal, porque só esse pode se endividar fortemente neste momento. O maior risco para o Ceará é que o rigor técnico de sua gestão pode não ser reconhecido pelo critério político e discricionário que o Governo Federal adotou na distribuição do socorro sem se ater a efetivas perdas de receita. A maioria dos estados não foram compensadas por suas perdas e, de longe, o Ceará foi o mais prejudicado, pois, segundo levantamento do jornal O Globo, é o que teve a maior proporção de sua receita de 2019 a descoberto.

OP – Como vê as medidas de socorro feitas aos estados? E o que mais preocupa neste cenário?

José Roberto Afonso – A ciência das finanças foi abandonada e no seu lugar medidas estão sendo adotadas sem menor rigor técnico. O socorro virou uma grande transferência voluntária em que o governo federal transfere para quem quer e não para quem realmente precisa.

OP – Por que o senhor diz isso? E quais os riscos que este tipo de condução traz?

José Roberto Afonso – É o caso do Ceará, por exemplo, que teve boa parte da perca de arrecadação não compensada pelo socorro transferido pelo Tesouro. Em termos relativos, é o estado mais prejudicado do País. Melhor teria sido usar o sistema do seguro no qual se apura quanto efetivamente diminuiu a arrecadação e daí calcular o montante a transferir.

OP – Quais os principais problemas que o senhor enxerga no “Novo Regime de Execução Fiscal” , estabelecido na LC 173/2020?

José Roberto Afonso – O novo regime pode ficar velho diante do novo cenário fiscal.

OP – Apesar de não cobrir a crise, muitos municípios receberam recursos que jamais arrecadaram de suas receitas tributárias próprias, muitas vezes, acomodados pela receita proveniente do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Como estabelecer o grau de confiança na aplicabilidade destes recursos e a accountability (prestação de contas)? Há uma necessidade de ser redesenhado o papel das instituições de controle? Nessa questão, o economista cearense Alexandre Cialdini vem sugerindo a necessidade dos governos elaborarem um modelo de balanço social, com indicadores de performance para que a população pudesse conhecer melhor os resultados da aplicação dos recursos. Como o senhor avalia?

José Roberto Afonso – Sim, o controle também será reinventado. Cada vez mais a sociedade cobra maior participação na fiscalização. Iniciativas como as defendidas por Cialdini serão muito úteis e certamente bem aceitas pelos brasileiro.

OP – Muitos estados começaram agora a flexibilizar as políticas de isolamento, mesmo sem a queda no número de casos e mortes. E sem uma testagem mais ampla. Como vê este processo de reabertura econômica do Brasil?

José Roberto Afonso – Aqui se ignora tanto a ciência médica quanto a econômica. Análises consistentes e experiências internacionais revelam que não há contradição entre saúde e economia. Não há mais dúvida que um isolamento mais forte pode restabelecer confiança nos consumidores e nos empresários para que retomam suas atividades. O Brasil se tornou parâmetro mundial do que não se fazer diante da pandemia da Covid-19 e lamentavelmente pagará muito caro, em vidas e em recursos.

OP – Já é possível vislumbrar uma luz no fim do túnel? O Brasil, na sua avaliação, ainda levará quanto tempo para retornar à normalidade?

José Roberto Afonso – O Brasil ainda está na fase de aumentar o tamanho do túnel e da escuridão. O novo normal passará por mais digitalização da economia e nova proteção social dos trabalhadores. O mundo já estava a discutir essas questões bem complexas e desafiadoras, será ótimo que o País também se integre a esse debate.

OP – Nos últimos anos, vinha ganhando força no Brasil o discurso de que o País deveria adotar um estado mínimo e o próprio ministro da economia, Paulo Guedes, é um defensor do liberalismo econômico. Em que medida esse tipo de discurso acaba caindo por terra em situações como essas?

José Roberto Afonso – Discurso não é prática, muito menos o liberalismo não deveria se confundir com inépcia. É irrelevante o tamanho do Estado, se gordo ou magro. Importa que seja forte, tenha capacidade de reduzir desigualdade.

OP – O senhor acredita que há ambiente para o Governo fazer as reformas administrativa, tributária e a PEC do Pacto Federativo? E o que acontecerá com a economia se o Governo não conseguir levar adiante esta agenda em 2021?

José Roberto Afonso – Não adianta reformar o que por ora não tem forma definida. Será preciso reinventar instituições e regras. Para tanto, é preciso ter diagnóstico realista. Há século e meio atrás, o Brasil cobrava imposto sobre propriedade e comércio de escravos. A escravidão acabou e obviamente se tornou algo inaceitável na sociedade de hoje. Talvez muitos dos impostos cobrados hoje ficaram velhos diante da economia, cada vez mais se movimentando nas nuvens e não na terra. Reinventar o sistema tributário, uma instituição clássica, significará reduzir ou extinguir impostos de hoje e criar novos.

OP – A pandemia tem demonstrado a inversão de financiamento e de gastos na execução com saúde, ou seja, atualmente municípios e estados assumem parcela mais significativa que a União e o setor público. Brasileiros, no geral, comportam menos de 45% do gasto total com saúde, quando comparado com o PIB. Quais mecanismos de financiamento da saúde daqui para frente, considerando o grau de envelhecimento da população brasileira?

José Roberto Afonso – A Constituição de 1988 previu um financiamento múltiplo da seguridade social, que inclui a saúde, de modo a cobrar contribuições de folha salarial, faturamento e lucro. É um caminho que nunca foi bem assimilado no País. Seria interessante voltar ao espírito da Constituinte.

OP – E por que as medidas de socorro às empresas, via acesso ao crédito, estão demorando tanto para chegar na ponta?

José Roberto Afonso – Porque insistem em usar canais e instrumentos que perderam espaço na economia brasileira, como o sistema bancário, e também porque o governo não assumiu a mesma postura proativa e de coordenação que se constata nas economias mais avançadas.

OP – Há fôlego para o Governo dar continuidade aos auxílios emergenciais à população mais vulnerável? E quais as consequências de uma descontinuidade desta política?

José Roberto Afonso – O melhor é o caminho normal do investimento, da produção e do trabalho, de modo que se possa reduzir e até eliminar o auxílio com caráter emergencial. Ainda não se apontou claramente esse caminho.

OP – A LRF completa 20 anos. Como avalia este período? Há necessidade de mais mudanças?

José Roberto Afonso – LRF melhorou muito a cultura fiscal do País e, sobretudo, seu processo de elaboração e implantação podem ajudar na inevitável reconstrução das regras para lidar com o novo normal da economia e da sociedade.

 

Currículo

José Roberto Afonso é doutor em Desenvolvimento Econômico pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é professor do programa de mestrado do Instituto Brasiliense de Direito Público – IDP; sócio de duas empresas de consultoria (Finance no Brasil e 3i em Portugal); e consultor independente, inclusive de organismos multilaterais.

Experiência

Em seu currículo, soma passagens como superintendente do Banco de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e assessor técnico especial do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte. Além de pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (IBRE/FGV).

Portugal

Atualmente, o economista está cursando pós-doutorado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa (ISCSP), em Portugal. E é de lá que ele respondeu a entrevista do O POVO por e-mail.

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