Entrevista com José Roberto Afonso publicada nos Cadernos da Escola Paulista de Contas Públicas (2020).
José Roberto Afonso é economista, professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e pesquisador do Centro de Administração e Políticas Públicas (CAPP) da Universidade de Lisboa. É considerado um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) devido ao seu trabalho como assessor no Senado Federal à época de sua aprovação.
Maurício Bento: Bom dia, professor. Primeiramente, obrigado por se dispor a participar desta nossa edição da Revista Cadernos da Escola Paulista de Contas Públicas. Como o tema desta edição é Responsabilidade Fiscal, gostaríamos de aproveitar para também falar dos 20 anos da LRF com o senhor que é considerado um dos pais dessa importante norma das finanças públicas Cadernos da Escola Paulista de Contas Públicas
O senhor estava no Congresso Nacional quando da aprovação da LRF. Como o senhor avalia o processo de elaboração, discussão e aprovação da lei? Houve participação e sugestões de diversos atores?
Foi um processo democrático e republicano inédito e ímpar. A começar que a lei nasceu do Congresso, que, ainda na emenda constitucional da reforma administrativa, exigiu que o Presidente enviasse um projeto de lei para regulamentar o art. 163 da Constituição (e muitos falaram de FMI à época). O Executivo submeteu o anteprojeto para consulta pública e discutiu cada dispositivo com os governos estaduais e municipais, dentre outros atores. O Congresso mudou e aprimorou o projeto do governo, aprovando-o em tempo recorde , nove meses, com quórum de emenda constitucional. Além disso, o STF rejeitou a derrubada inteira da lei.
Os Tribunais de Contas ajudaram o BNDES a divulgar a lei e a preparar sua implementação. Cada uma das etapas desse processo foi sendo objeto de amplo e aberto debate público.
Na sua avaliação, quais foram as medidas mais importantes da LRF e que mais contribuíram para elevar o grau de responsabilidade com os recursos públicos no país?
A mudança cultural foi o mais importante, e isso não resultou de uma medida, mas sim do conjunto da obra, desde o processo legislativo até a adesão de autoridades, fiscais e, sobretudo, da mídia e da população. Regras e políticas fiscais se tornaram um tema comum na agenda nacional, em que pese ser uma matéria complexa. Esse espírito será muito importante para discutirmos a saída da crise da Covid-19, que fatalmente exigirá o aprimoramento das regras fiscais não só no País, como em todo o mundo.
Qual seria o balanço desses 20 anos de LRF? O senhor acha que houve alguma falha na implementação da lei? Algo que poderia ter sido feito de melhor maneira?
Algo relacionado à dívida pública ou limite de gastos com pessoal? Para além de falhas, faltou completar a lei em aspectos fundamentais: limites para dívida federal, consolidada e mobiliária; avaliação anual e eventual revisão dos limites pelo Senado Federal; a criação do Conselho de Gestão Fiscal; desenvolvimento a contabilidade de custos; metas para dívida e para patrimônio, dentre outros complementos e aprimoramentos.
Outra falta foi a não atualização da Lei 4320 de 1964, com mais de meio século. Não há como regras e princípios fiscais funcionarem bem se as contas e suas classificações estão ultrapassadas. Os problemas como a aplicação dos limites de despesas de pessoal, por exemplo têm mais a ver com a ausência da lei geral de contas públicas.
Qual o papel dos Tribunais de Contas para a garantia da aplicação das normas fiscais e do bom uso dos recursos públicos? Como podem melhorar esse papel?
Papel crucial, porque são os guardiões da LRF. Para tal, antes de tudo, devem dar exemplo e aplicar de forma impecável a lei em sua própria gestão. Os Tribunais, hoje, passaram a atuar ex-ante e, para tal, creio que poderiam o fazer de forma mais moderna e simplificada. É preciso ter uma base nacional padronizada e única de contas públicas e os Tribunais de Contas podem liderar essa inovação.
Quais são os principais problemas relacionados às finanças públicas nos dias de hoje, no âmbito federal e no âmbito dos estados, e como o senhor acha que deveríamos endereçá-los?
O Covid-19 veio criar um novo normal e agora precisamos canalizar todos os esforços para repensar regras, políticas e práticas fiscais. Será preciso reinventar o sistema tributário, digitalizar a gestão pública, revolucionar o gasto público; sem isso, o governo e o país fracassarão em equacionar os novos desafios. Antes de tudo, importa agora recuperar o processo de elaboração da LRF, porque precisaremos repetir o mesmo espírito público porque fatalmente precisaremos negociar e aprovar novas regras para os tempos pós-Covid. O cenário certo será de governos mais endividados, arrecadação tributária com viés de baixa, e gasto público pressionado, sobretudo na área social, para dar assistência aos desempregados e abrigar na rede pública de saúde e de ensino os que tiveram que sair do setor privado. É preciso uma nova construção institucional para conciliar tendências tão contraditórias.
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