A polêmica mudança na partilha das receitas petrolíferas por Sérgio Wulff Gobetti, Rodrigo Octávio Orair, Rodrigo Valente Serra e Fernando Gaiger Silveira publicado por Ipea (6/2020).
“Este Texto para Discussão sistematiza um conjunto de estudos sobre os royalties do petróleo elaborados no passado recente e apresenta estimativas inéditas sobre os impactos fiscais das mudanças nas regras de repartição introduzidas pela Lei no 12.734/2012, cujos efeitos se encontram suspensos há sete anos por medida cautelar concedida nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no 4.917, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). O objetivo é contribuir com o esclarecimento de algumas questões-chave surgidas no debate e que poderão balizar a decisão de mérito dos ministros do STF, originalmente prevista para ocorrer em abril de 2020, mas adiada devido à crise da Covid-19.
Em síntese, a Lei no 12.734 reduz a porcentagem das receitas petrolíferas destinada exclusivamente aos estados e municípios confrontantes1 e aumenta significativamente a fatia já hoje distribuída a todas as Unidades da Federação (UFs) por meio do Fundo Especial do Petróleo. Embora se trate de uma alteração legal fundamentalmente paramétrica, na medida em que os conceitos balizadores da distribuição não estão sendo substituídos ou suprimidos, o estado do Rio de Janeiro questiona a constitucionalidade das novas regras com base em três razões, conforme descrito a seguir.
1) Suposta incompatibilidade com a norma contida no art. 20, § 1o, da Constituição Federal de 1988 (CF/1988), por prever distribuição de royalties e participação especial sobre o petróleo extraído do mar a todos os estados e municípios brasileiros e não apenas aos confrontantes. 2) Suposta violação ao pacto federativo originário da CF/1988, porque a maior fatia dos royalties do petróleo destinada aos estados e aos municípios produtores e confrontantes seria uma compensação à fórmula de cobrança do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre petróleo e derivados, apropriado exclusivamente pelos estados consumidores. 3) Suposta violação ao direito adquirido e ao ato jurídico perfeito, bem como aos princípios da segurança jurídica, da responsabilidade fiscal e do equilíbrio orçamentário, na medida em que as novas regras de repartição atingiriam os royalties a ser pagos sob os contratos de concessão vigentes e, dessa forma, frustrariam as expectativas de receita dos estados e municípios beneficiados pelo modelo atual.
Não pretendemos aqui enfrentar essas alegações diretamente no plano jurídico-constitucional, até porque isso já foi devidamente feito nos pareceres da Procuradoria-Geral da República (PGR), da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Advocacia do Senado Federal. Nosso objetivo, ao contrário, é mostrar que existem importantes questões adicionais relacionadas à polêmica, subjacentes ao debate jurídico-constitucional, que merecem ser esclarecidas a fim de evitar graves confusões.
Por exemplo, é comum alguns interlocutores desse debate se referirem aos royalties como uma espécie de compensação por danos ambientais ou socioeconômicos. Na realidade, conforme argumentaremos na seção 3, a previsão de pagamento de royalties pela produção de petróleo nada tem a ver com esses danos, mas, sim, com uma indenização pela progressiva exaustão de um recurso natural finito, devida a quem esse recurso (o petróleo) pertence – ou seja, à União, no caso brasileiro.
Em contrapartida, as regras de distribuição de royalties inseridas na legislação brasileira para beneficiar os estados e os municípios confrontantes, com base em critérios puramente geográfico-geométricos, tampouco se justificam por qualquer lógica socioeconômica plausível. Essas regras refletem, antes de mais nada, negociações políticas que se estabeleceram no Congresso Nacional nos anos 1980, antes da própria Constituição, num momento político de redemocratização e descentralização fiscal, no qual o governo federal foi pressionado a partilhar a receita de royalties da produção em mar. Até mesmo a escolha de quais tipos de linhas – ortogonais ou paralelas – seriam utilizadas para projetar a “confrontação” de cada município com a plataforma continental foi resultado de uma intensa barganha política, de acordo com a tese de doutorado do economista Rodrigo Serra (2005), que será utilizada como referência para recuperar detalhes importantes da história legislativa e da economia política dos royalties do petróleo.
Recorreremos ainda a estudos internacionais, baseados na experiência de países produtores de petróleo organizados sob a forma federativa, para demonstrar que não é usual a descentralização das receitas sobre a extração de petróleo na plataforma continental, como ocorre no Brasil, e que nosso país é aparentemente o único do mundo que adota o critério de confrontação com campos petrolíferos em alto-mar para o cálculo do coeficiente de participação de cada município sobre os royalties.
A aplicação desse critério, com peso preponderante sobre o rateio dos royalties e participação especial, em detrimento do Fundo Especial do Petróleo, que beneficia todos os entes federativos, tem sido responsável pela hiperconcentração das receitas na esfera municipal, que, conforme será evidenciado, não beneficia de forma minimamente equânime nem mesmo as cidades próximas das regiões produtoras ou confrontantes.
O estudo discutirá ainda inúmeras evidências, reunidas por diferentes estudos realizados nas últimas décadas por economistas e cientistas sociais, sugerindo que o atual modelo de repartição dos royalties, além de injusto, é economicamente ineficiente por incentivar os administradores municipais abençoados com recursos em abundância a abdicar da sua competência de arrecadar impostos e por resultar em incrementos de “gastos de má qualidade” que não se traduziram em melhorias na oferta de bens e serviços públicos ou nos padrões de vida da população. A mensagem básica que se extrai da emergente literatura empírica brasileira é que os ganhos de receitas petrolíferas não foram particularmente benéficos para as populações dos municípios beneficiários.
Por fim, o estudo enfrenta a indagação sobre como as eventuais mudanças nas regras de repartição dos royalties refletirão nas finanças dos estados e municípios beneficiários. Conforme será mostrado, o aumento na receita de royalties estimado para os próximos anos, segundo projeções da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), facilita a implementação das mudanças previstas na Lei no 12.734 sem grandes impactos sobre o equilíbrio fiscal da maioria dos entes atingidos.
O adiamento da mudança, ao contrário, tende a agravar o quadro de distorções federativas, na medida em que a fronteira de exploração do petróleo em torno da bacia de Santos está criando um novo grupo de municípios desproporcionalmente muito ricos. São municípios que já em 2020, se as novas regras de distribuição não entrarem em vigor, estarão ganhando dez ou vinte vezes mais do que ganhavam até poucos anos atrás, enquanto a maioria das cidades brasileiras vive um momento de grandes dificuldades financeiras e fiscais em decorrência da prolongada crise econômica do país, agravada agora pela pandemia da Covid-19.2…”
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