Piketty 2.0, impostos progressivos e reforma tributária no Brasil pós-coronavírus por Celia Kerstenetzky e Fabio Waltenberg publicado por CEDE (2020).
“Capital e Ideologia: uma síntese
Em seu mais recente livro, Capital et Idéologie, o economista francês Thomas Piketty faz um inventário histórico de sociedades desiguais e da força de discursos e instituições que tratavam (como ainda tratam) de defender e justificar as desigualdades econômicas, políticas e sociais então (e ainda hoje) vigentes. Mostra além disso como crises agudas e profundas, como as grandes guerras no século 20, ao exporem a disfuncionalidade de várias desigualdades, trouxeram à tona temas antes interditados por serem vistos como excêntricos ou perigosos – como o sufrágio universal, o imposto de renda progressivo ou impostos excepcionais sobre a riqueza. Estes, em seu tempo, ao se traduzirem em políticas concretas, acabaram normalizados e aceitos como legítimos.
Apoiado nos melhores dados disponíveis de diferentes países, obtidos a partir de um considerável esforço de combinação de fontes por dezenas de colaboradores, o autor documenta a evolução das desigualdades no último século e meio. Um fato contudo se destaca. Da Revolução Conservadora dos anos 1980 para cá, período que classifica de hipercapitalismo, houve uma explosão na distância, medida em riqueza e renda, entre o décimo mais abastado da população (especialmente o centésimo mais rico) e os demais (principalmente os 50% mais pobres). O fenômeno, observado nos países centrais – de modo mais intenso nos Estados Unidos, mas também na Europa -, aproximou o mundo atual das desigualdades extremas do final do século 19 e início do século 20. Países menos desenvolvidos ou estagnaram em níveis elevados de desigualdades ou a viram aumentar também. Desnecessário dizer que o Brasil figura entre os mais desiguais, superado apenas pelos países ricos em petróleo do Oriente Médio.
Piketty procura diferenciar sua abordagem de outras que qualifica como deterministas, por considerarem haver um inexorável curso da história, ou um único conjunto possível de condução de políticas – tributárias e sociais, por exemplo. No passado, como agora, sempre houve e haverá escolhas, alternativas a serem avaliadas. As grandes decisões com impacto nas diversas dimensões das desigualdades não são, para ele, de natureza técnica ou econômica, mas sim ideológica e política. Sendo assim, é desejável que se sujeitem ao debate público informado e à deliberação democrática.
De fato, observa o autor, as desigualdades extremas de fins do século 19 e início do século 20 se viram fortemente comprimidas ao longo do século 20, graças a uma combinação de eventos cruciais (as guerras, a Grande Depressão) e decisões fundamentalmente políticas que foram subsequentemente tomadas. Da mesma forma, aposta ele, a desigualdade galopante das últimas três ou quatro décadas pode ser refreada ou ter seu curso invertido. Seria o escândalo representado por este fato o evento crucial agora? Agora, como no passado, a mudança requer esforço intelectual (como o que o próprio autor faz ao mergulhar na história e nas estatísticas) e decisão política. Se no passado remoto projetos redistributivos no campo da tributação progressiva foram em vários momentos descartados, sob a justificativa de colocarem em risco a própria propriedade privada e sua contribuição ao bem comum, as intensas e crescentes desigualdades atuais que já não guardam qualquer relação com a “utilidade social” (termos do autor) ameaçam não encontrar limite caso não sejam politicamente contrariadas. A atestar o mal social representado pelas desigualdades contemporâneas, Piketty compara as pujantes taxas médias de crescimento econômico (uma medida possível da utilidade social) vigentes ao longo do redistributivo século 20 (para ele, o período entre 1914 e 1980) com as que passam a vigorar no período recente de prosperidade limitada e exclusivamente concentrada nos mais ricos, o que segundo ele alimentaria o sentimento generalizado de injustas desigualdades.
O desempenho recente da social-democracia – entendida em sentido amplo como abrangendo, para além dos partidos social-democratas, a centro-esquerda de diversos matizes em diferentes países – é alvo de crítica severa. A social-democracia, força essencial nas mudanças progressistas do século 20, estaria sendo incapaz de compreender as circunstâncias presentes e responder aos novos desafios, e a consequência é o derretimento de sua base de apoio tradicional, entre classes médias remediadas e classes populares, cada vez mais seduzidas por plataformas identitárias, nacionalistas, populistas. Ao capitular à inevitabilidade da globalização nos termos em que tem ocorrido e do “proprietarismo” (a ideologia da sacralização da propriedade privada), a social-democracia teria abdicado de explorar ou conceber: (a) formas de socialização e circulação de propriedade, como a “propriedade social” e uma “dotação universal de capital”, alternativas à tradicional posição socialista de propriedade estatal dos meios de produção, (b) uma plataforma de tributação progressiva que inclua um imposto sobre a riqueza, e (c) a imprescindível articulação de uma agenda transnacional para viabilizar uma reforma tributária fiscalmente justa…”
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