Relatório semestral sobre a região da América Latina e Caribe – A economia nos tempos de covid-19 publicado por Banco Mundial (4/2020).
“Durante os últimos cinco anos, o desempenho econômico da América Latina e do Caribe tem ficado aquém do esperado, com taxas de crescimento médias próximas de zero. Vinha se tornando cada vez mais difícil manter as tendências de gastos sociais viabilizadas por preços de commodities excepcionalmente altos, o que obrigou muitos países a enfrentar ajustes dolorosos. Ao longo de 2019, emergiu agitação social em toda a região, evidenciando o crescente hiato entre as expectativas do povo e as realidades econômicas e sociais de cada país. Em seguida, no início de 2020, os preços internacionais do petróleo colapsaram. Este foi também o momento em que a epidemia Covid-19 se desencadeou.
Os países da América Latina e do Caribe já vivenciaram vários choques negativos graves ao longo de sua história, incluindo quedas acentuadas nos preços de commodities, agravamento drástico de suas condições financeiras e grandes desastres naturais. O ambiente externo atual da região tem muito em comum com esse histórico, o que significa que a experiência anterior será muito valiosa. No entanto, a epidemia Covid-19 introduz uma nova dimensão à crise, pois as medidas necessárias para conter o surto também levam a um grande choque de oferta.
Os canais pelos quais os choques externos adversos vão afetar as economias nacionais vão variar de país para país. A demanda da China e dos países do G7 cairá drasticamente, mas possivelmente em graus diferentes, com diversas implicações para os exportadores de commodities da América do Sul e para os exportadores de bens e serviços manufaturados da América Central e do Caribe. O declínio dos preços do petróleo terá consequências negativas para países cujas exportações e recursos orçamentários dependem fortemente desse produto, mas trará alívio aos importadores líquidos de petróleo. O tráfego aéreo já se encontra reduzido a uma fração do que era, uma vez que muitos voos foram cancelados para impedir a propagação do vírus. Isso resultará em um colapso do turismo, que afetará severamente os países da bacia do Caribe, com menores implicações em outras nações.
Quanto ao choque de oferta, a América Latina e o Caribe estão apenas nos estágios iniciais da epidemia. Ao passo que todas as economias do G7 registraram seus primeiros casos de Covid-19 antes do final de janeiro de 2020, as primeiras mortes na região ocorreram quase dois meses depois, em meados de março. O início de qualquer pandemia é caracterizado por profunda incerteza, principalmente quando a doença é nova e seu contágio e letalidade não são bem conhecidos. Devido a essa incerteza, a maioria dos governos optou, de forma sensata, por salvar vidas “a qualquer custo”, se necessário. No entanto, vários meses após o surgimento da epidemia, a crescente disponibilidade de dados epidemiológicos e econômicos já nos permite avaliar o impacto das medidas adotadas. Os países em que a epidemia chegou mais tarde podem aproveitar a defasagem mencionada acima para ajustar suas políticas públicas.
Países em toda a região têm tentado gerenciar o equilíbrio entre custos sanitários e custos econômicos. Atingir o equilíbrio “correto” requer uma avaliação dos impactos sanitários e econômicos das medidas que podem ser adotadas para conter a propagação da epidemia. Tais medidas incluem desde quarentenas e isolamentos populacionais em nível nacional até iniciativas de distanciamento social dirigidas a grupos populacionais vulneráveis, tais como idosos, ou a locais específicos.
Foi elaborada, para este relatório, uma estimativa do impacto de medidas gerais e específicas no número de casos da epidemia Covid-19 com base em dados diários de 25 países. Os resultados demonstram que medidas gerais de contenção sempre resultam em menos casos de infeção ao longo do tempo, em comparação a medidas específicas. Porém, ambas são consideravelmente mais eficazes se implementadas logo após o registro do primeiro caso. Por exemplo, medidas específicas de contenção adotadas 15 dias após o surto da epidemia contribuem mais para retardar seu progresso que medidas gerais adotadas após 30 dias.
A avaliação do custo econômico das medidas de contenção exige dados de alta frequência sobre a atividade econômica. Exemplos deste tipo de dados incluem dados de luz noturna obtidos a partir de imagens de satélite; consumo de eletricidade; ou o número de trajetos diários avaliados por aplicativos de transportes compartilhados. Para este relatório, o indicador de alta frequência selecionado foi o volume de dióxido de nitrogênio medido por meio de imagens de satélite. As emissões estão altamente correlacionadas à combustão ativa por veículos e outros maquinários, e os resultados confirmam que medidas gerais para conter a epidemia Covid-19 levaram a drásticas quedas na atividade econômica.
Os países da América Latina e do Caribe não dispõem de um espaço fiscal semelhante ao dos países avançados para lidar com a situação. Alguns, inclusive, já vinham enfrentando crises mesmo antes do surto da epidemia Covid-19. As economias da região também são caracterizadas por níveis mais altos de informalidade, o que reduz, para muitas empresas e famílias, o impacto de certas medidas de apoio, tais como adiamentos de impostos e subsídios salariais. Com recursos limitados e instrumentos restritos, uma elaboração adequada das políticas públicas de resposta à epidemia Covid-19 torna-se essencial.
As dificuldades geradas pela crise serão enormes para grandes segmentos da população. Muitas famílias vivem de maneira precária, ou, como se diz no Brasil, “vendem o almoço para pagar a janta”. Elas carecem dos recursos básicos para sobreviver aos bloqueios e quarentenas necessários para conter a propagação da epidemia. Muitos trabalhadores são autônomos, e a informalidade é comum mesmo entre os assalariados. Alcançar esses trabalhadores por meio de transferências é mais difícil que nas economias em que a maioria do emprego é formal. Muitas famílias também dependem de remessas, que estão se extinguindo à medida que as suas atividades abrandam ou se interrompe em outros países, onde os imigrantes tendem a ser um grupo muito afetado.
As políticas de resposta à crise precisam tratar diretamente dessa dimensão social. A primeira linha de resposta inclui programas existentes de proteção e assistência social, que podem ser rapidamente expandidos e cuja a cobertura ampliada, inclusive por meio de canais de pagamento móveis ou digitais. Também pode ser considerada a implementação de programas de distribuição de alimentos enquanto perdurarem as medidas mais rígidas de distanciamento social.
A orientação geral de política econômica na presença de choques adversos é proteger os trabalhadores, não os empregos. Esse conselho é baseado na premissa de que a maioria dos choques afeta empresas, setores ou locais específicos, e medidas que permitam a reestruturação setorial ou espacial tendem a aumentar a eficiência. No entanto, tal conselho-padrão não se aplica quando o choque econômico afeta toda a economia. Algumas relações empregador-empregado, que levaram muito tempo para serem construídas e permaneceriam lucrativas quando a economia voltasse ao normal, podem ser dissolvidas permanentemente pelo choque temporário. O capital humano específico de algumas funções pode ser perdido, e retomar a produção mais tarde pode se tornar mais difícil.
Vale a pena considerar uma abordagem dupla para proteger os empregos. Empresas e setores de importância estratégica poderiam receber apoio explícito em troca do compromisso de manter seus trabalhadores. Empresas de menor dimensão poderiam ser identificadas e triadas por bancos ou outros intermediários. Essas instituições financeiras seriam incentivadas, por meio do compartilhamento de riscos e garantias, a assegurar a disponibilidade de liquidez em um contexto de crescente necessidade de capital de giro.
Em crises anteriores em que o setor financeiro enfrentou problemas de solvência, as perdas de empregos foram muito mais marcantes e a recuperação subsequente foi mais difícil. Infelizmente, o risco de uma crise financeira não pode ser descartado no contexto atual. Em geral, o setor financeiro encontra-se em uma posição relativamente sólida, mas a magnitude dos choques é extraordinária. Em nível internacional, a região vem observando maiores fluxos de portfólio que na época da Crise Financeira Global. Em nível doméstico, muitos devedores serão incapazes de cumprir suas obrigações e buscar renegociações, ou simplesmente se tornarão inadimplentes.
Proteger os sistemas de pagamento é essencial no contexto atual. Entretanto, mesmo na presença de uma infraestrutura de mercado que funcione bem, os governos têm um papel importante a desempenhar como coordenadores da resposta. Garantias gerais iniciais para depósitos bancários podem ajudar a manter a confiança do público. Ademais, pode ser necessário simplificar os processos extrajudiciais de reestruturação da dívida, fornecer orientações sobre medidas regulatórias e fortalecer a resolução do banco. Medidas de coordenação mais radicais, tais como moratórias ou cronogramas de adiamento de pagamentos, também podem ser consideradas, dependendo da gravidade da crise.
Uma pergunta-chave é quem, ao final de tudo isso, deverá arcar com as perdas. Do ponto de vista econômico, a resposta é simples: as perdas devem ser centralizadas no governo, na medida do possível. Ante um choque face ao qual não se pode fazer um “seguro” como a epidemia Covid-19, somente os governos podem servir como os “seguradores” de último recurso. Todavia, dada a restrição de recursos, é importante explicar claramente como as perdas serão gerenciadas. Uma declaração desse tipo coordenaria as expectativas e ajudaria os agentes econômicos a se adaptarem ao novo ambiente, numa espécie de pacto social sobre como gerenciar a crise. Tal declaração também precisa ser realista sobre o que é viável, explicitando prioridades claras.
Para apoiar empregos e empresas, os governos podem ter de adquirir cotas em empresas estrategicamente importantes. Ademais, para evitar uma crise financeira, talvez precisem recapitalizar os bancos e absorver ativos não produtivos. Se não forem administradas de maneira adequada, essas medidas podem abrir as portas para práticas de rentismo e apadrinhamento político. É, contudo, fundamental que o processo de aquisição e gerenciamento de ativos seja considerado transparente e profissional, de forma a manter a confiança no governo. Isso também permitirá que os tomadores de decisão adotem as medidas necessárias urgentes, sem medo de serem processados no futuro.
Também é necessário estabelecer mecanismos sólidos para garantir que a aquisição e o gerenciamento de ativos sejam realizados sem interferência de políticos, com base nos melhores exemplos identificados em empresas de gestão de ativos e fundos soberanos de países com nível semelhante de desenvolvimento.
Uma resposta prospectiva à crise deve, idealmente, ir além do atendimento às necessidades imediatas e traçar o caminho para uma recuperação vigorosa e sustentável. Medidas de emergência bem projetadas constituem um passo nessa direção. Proteger fontes estratégicas de emprego, evitar uma crise financeira e gerenciar ativos de maneira profissional ajudarão a impulsionar a economia. No entanto, apesar dos desafios urgentes, também é necessária uma visão de longo prazo. Cada país deve recuperar sua agenda de desenvolvimento de longo prazo, tendo ao centro a geração de empregos e a transformação econômica…”