Justiça fiscal de transição no PLOA/2021 para o déficit de 100 mil vidas por Élida Graziane Pinto publicado por Consultor Jurídico (8/2020).
“Como é que nós vamos fazer o país daqui a dez anos? Essa discussão não existe. A única discussão que se faz é: olha, equilibramos o orçamento, ou não? Onde é que nós vamos cortar? Como se fosse uma coisa mágica: desde que a gente equilibre o orçamento fiscal, os investimentos aparecerão e o país vai crescer. Olha, isso claramente não é verdade. Isso é um pensamento mágico.”
André Lara Resende
O envio do projeto de lei orçamentária para 2021 será feito nos próximos dias em todos os entes da federação. Certamente envolverá uma espécie de justiça fiscal de transição, diante do acúmulo de mortes evitáveis que temos visto ao longo de 2020, por força de uma errática, insuficiente e lenta resposta estatal à pandemia da Covid-19.
A superação da trágica marca de 100 mil mortes implica, no mínimo, a incidência do regime de responsabilidade objetiva a que se refere o art. 37, §6º da Constituição, por força das incontestáveis ações e omissões estatais que concorreram para o aludido resultado. Eis o contexto em que o conceito de “justiça de transição” merece ser invocado para pautar a necessidade de reparação coletiva e intergeracional até mesmo para superar os alegados limites fiscais trazidos pelo teto de despesas primárias.
Ideal seria considerarmos as mortes acumuladas durante a pandemia com a mesma higidez normativa e seriedade analítica como são tratados, por exemplo, as metas e os riscos fiscais que indicam a sustentabilidade da dívida pública. Essa é a razão pela qual proponho falarmos em déficit de 100 mil vidas perdidas para a Covid-19 por inépcia estatal.
A provocação de André Lara Resende que serve de epígrafe deste artigo nos permite contraditar o fetiche do orçamento equilibrado com o reposicionamento da pergunta sobre “onde vamos cortar” em outro patamar: quantas vidas podemos cortar impunemente para contermos a dívida pública? Não há “pensamento mágico” na economia que possa ser colocado à frente do dever de preservação das vidas humanas.
Assim ressituado o balanço entre variáveis jurídico-econômicas, precisamos claramente assumir que o atual déficit de 100 mil vidas perdidas impõe, nesta quadra da nossa experiência constitucional, um sério e honesto esforço de justiça de transição. Trata-se de instituto usualmente aplicado na responsabilização dos crimes cometidos por ditaduras, em esforço de desvendamento da verdade histórica e durante o processo de restauração de regimes democráticos. Sua finalidade estrutural é a reparação a direitos humanos lesados em larga escala por ações e omissões governamentais.
Trazer a busca por uma transição justa para o presente momento fiscal brasileiro é ousadia teórica que se justifica para refutar as teses de que (1) a Constituição de 1988 não caberia no orçamento público e (2) seria necessário negar-lhe eficácia orçamentário-financeira em nome de uma reducionista concepção de responsabilidade fiscal que foi inscrita no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pela Emenda 95/2016.
Essa é uma pauta urgente, na medida em que antevemos o risco de que o teto de despesas primárias imponha — direta ou indiretamente — a completa paralisação de serviços públicos essenciais já no texto do PLOA/2021, dada a repercussão federativa dos gastos da União para o custeio de tais serviços, a exemplo do que se sucede no SUS.
Ao pressupormos que a calamidade pública reconhecida pelo Congresso Nacional (na forma do Decreto Legislativo nº 6/2020) supostamente findará no final deste ano e nada fizermos para mudar o ordenamento atualmente vigente, o teto se imporá como fronteira do “pensamento mágico” em 2021, ainda que isso custe outras milhares de mortes evitáveis.
Segundo Martin Sandbu, comentarista de economia do Financial Times, o mundo passa por uma profunda transição na interpretação das regras fiscais, em artigo disponível aqui. Ao invés de “responsabilidade fiscal” para reduzir carga tributária e formar superávits primários em favor tão somente dos credores da dívida pública, seria preciso ampliar a tributação e a própria dívida pública em favor também do bem-estar social e ambiental.
Aludido comentarista nos conclama à reflexão sobre os danos causados pela ortodoxia fiscal, já que ela não é politicamente neutra e beneficia primordialmente os credores de liquidez e do rentismo, em detrimento dos serviços públicos e dos trabalhadores precarizados. Trata-se de uma fissura profunda em conceitos e princípios fiscais que orientavam o consenso normativo-econômico mundial desde a década de 1970…”
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