Gasto público e desigualdade social: o orçamento do governo federal brasileiro entre 1995 e 2016 por Ursula Dias Peres e Fábio Pereira dos Santos publicado por Revista Brasileira de Ciências Sociais (5/2020).
“A análise do orçamento público é fundamental para a compreensão das escolhas dos governos e da trajetória das políticas públicas, tanto porque revela quanto se gasta como também os mecanismos pelos quais tais gastos são financiados.
Três premissas orientam a análise que apresentamos neste artigo. A primeira é o fato de que o orçamento público é objeto de conflitos distributivos entre distintos interesses. A segunda aponta que essa disputa não ocorre no vazio – diferentemente, é afetada por regras de formatação orçamentária que expressam motivações. Além disso, escolhas prévias criam constrangimentos institucionais, reduzindo a margem de escolha dos governos presentes. A despeito disso, preferências partidárias e programáticas podem ser detectadas nas mudanças introduzidas na alocação orçamentária.
A trajetória do orçamento público brasileiro no regime democrático contemporâneo foi afetada por dimensões que não operam de modo convergente. Ao contrário, o orçamento público é resultado de dinâmicas que funcionam contraditoriamente. A primeira delas diz respeito à centralização versus descentralização dos recursos públicos. A trajetória do orçamento público brasileiro também foi afetada pela permanente disputa pelo fundo público versus a vinculação constitucional/legal de recursos a determinadas despesas. Em terceiro lugar, ações de maior transparência das informações e accountability sobre os orçamentos foram acompanhadas por aumento da complexidade orçamentária. Por fim, a ampliação do gasto social – que produziu a redução das desigualdades sociais – conviveu com a regressividade da arrecadação tributária.
A primeira dimensão diz respeito a uma das bases fundantes da Constituição Federal de 1988 (CF), que é a autonomia dos entes federativos e um pacto fiscal coerente com tal autonomia, capaz de reequilibrar um federalismo abalado pela ditadura militar. A CF previu uma redivisão de recursos tributários para estados e especialmente municípios, aumentando os recursos locais.
Por outro lado, durante os anos 1990, a prerrogativa da União para cobrança de contribuições tornou possível recentralizar recursos, aumentando a carga tributária não compartilhada com os demais entes da federação. Também houve um processo, mais lento e incremental, de descentralização e municipalização de despesas e de implementação de políticas públicas, acompanhado de centralização da autoridade sobre o desenho dessas políticas no nível federal, por meio de ações de controle e de indução através de repasse de recursos federais (Almeida, 2005, p. 34; Arretche, 2005, p. 78-79).
Em relação à segunda dimensão, a forte pressão desde o final dos anos 1970 e ao longo dos anos 1980 para a democratização da discussão sobre alocação dos recursos públicos resultou no aumento de processos e práticas participativas e, consequentemente, na ampliação de grupos de interesses, movimentos e partidos na negociação orçamentária.
A CF vinculou parcelas de recursos e estabeleceu regras de gasto em áreas como educação e saúde. A alocação do fundo público foi se cristalizando em normas constitucionais e infraconstitucionais, reduzindo o espaço de conflito e negociação de recursos entre diferentes setores de políticas públicas. Se nos anos 1990 e início dos anos 2000 ampliaram-se o número de instâncias participativas, como conselhos de políticas setoriais (saúde, educação, crianças e adolescentes e assistência social, entre outros), e os orçamentos participativos, em que se discutiriam a despesa global e a receita, nos últimos anos essas arenas de discussão de orçamento e conflito distributivo foram se tornando muitas vezes rotineiras e burocráticas (Peres e Mattos, 2017).
Essa dinâmica de transformações institucionais, que modifica também os atores, ilustra o que Pierson (1993) chama de policy feedbacks, situações em que as instituições passam a ser “variáveis independentes” que resultam em mudanças nos atores políticos e em fontes de sua própria resiliência e durabilidade com a passagem do tempo. As vinculações orçamentárias podem ser entendidas, nesta chave interpretativa, como instituições que, “uma vez adotadas, reestruturam o processo político subsequente” (Skocpol, 1992, p. 57-58).
A terceira dimensão, com o estabelecimento de regras para receitas e despesas públicas nas três esferas da federação, trouxe ganho indiscutível em transparência e accountability mas, por outro lado, aumentou a complexidade dos orçamentos públicos. Essa complexidade mantém distância de boa parte da sociedade sobre o que é e como funciona a alocação de recursos públicos. Os ganhos de transparência e accountability não foram suficientes para garantir e ampliar a apropriação social sobre essa temática (Afonso, 2016; Pederiva, 2018, p. 301).
A quarta dimensão é talvez a mais importante para explicar a trajetória das finanças públicas brasileiras. A busca, nas últimas décadas, pela redução das desigualdades sociais por meio de políticas públicas inclusivas ocorreu em conjunto com a sobrevivência de instituições e políticas de concentração de renda e manutenção de privilégios.
Um exemplo claro do processo de redução da desigualdade de renda pode ser visto nas políticas de valorização do salário mínimo, com reajustes reais de valor além da correção monetária, e de transferência de renda (previdência social, que passou a incluir uma parte marginalizada da população, excluída até 1988; Benefício de Prestação Continuada – BPC e Bolsa Família, principalmente). Barros, Henriques e Mendonça (2000), que usaram dados da Pesquisa Nacional por amostra de domicílios (PNAD) para evidenciar a persistência da pobreza (com leve redução) até o final dos anos 1990, mostraram que o principal fator que explicava a pobreza era a desigualdade de renda. Barros et al. (2006) concluíram que as mudanças no mercado de trabalho e na rede de proteção social causaram queda da desigualdade no início dos anos 2000.
Ao mesmo tempo em que a rede de proteção social foi ampliada no período 1995-2016, foi mantida a política tributária regressiva calcada em impostos indiretos e sobrepostos, junto com uma tímida e regressiva taxação da renda e do patrimônio no país, contraditória com a redução de desigualdades, como argumentaram vários trabalhos que analisaram diferentes aspectos e subperíodos (Fagnani, 2019, p. 19; Fandiño e Kerstenetzky, 2019, p. 307; Silveira, 2012, p. 65).
Morgan (2017) mostrou, usando dados das Contas Nacionais, do Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) e da PNAD, que a redução das desigualdades de renda provenientes do trabalho e das transferências de renda resultou em aumento do percentual da renda apropriado pelos 50% mais pobres da população brasileira, que capturaram 22% do aumento da renda no período 2001-2015, ao mesmo tempo em que a concentração dos recursos de capital resultou em aumento da participação dos 10% mais ricos, capturando 61% do aumento de renda no período. Gobetti e Orair (2016) argumentam que a regressividade da tributação sobre a renda das pessoas físicas no Brasil não apenas se manteve como foi acentuada ao longo das últimas décadas, com aumento das isenções e diminuição das alíquotas efetivas que incidem sobre a renda dos mais ricos. Ou seja, ao longo das últimas décadas, a política orçamentária da União, por meio de decisões tributárias e alocativas de despesas, permitiu tanto a ampliação de gastos sociais, beneficiando a população menos favorecida, como a concentração de renda no topo da pirâmide.
Com base neste argumento e nas quatro dimensões apresentadas, analisamos os gastos orçamentários federais e suas consequências para a redução da desigualdade do país. Analogamente ao trabalho de Arretche (2018), o foco no orçamento permite olhar tanto para a redução da desigualdade medida pela renda monetária, quando se analisam os gastos federais em previdência e assistência social (transferências de renda), como para a desigualdade em sua dimensão do acesso a serviços públicos, quando a análise recai sobre os gastos com saúde e educação. Outros agrupamentos de despesas orçamentárias – pagamento de juros, subsídios e subvenções ao setor privado, despesas de pessoal – são objeto de análise não apenas porque causam impactos relevantes sobre a desigualdade, mas também porque influenciam decisivamente a possibilidade de aplicação de recursos nas áreas sociais. As receitas orçamentárias federais são brevemente tratadas, tanto em suas características redistributivas como em suas interações com os demais entes da federação.
Ressaltamos que não pretendemos esgotar neste trabalho a discussão sobre o financiamento das diferentes políticas de responsabilidade da União. Nosso foco são as contradições entre a arrecadação tributária e os principais gastos federais no que diz respeito à sua contribuição para a redução ou não da desigualdade. Essas limitações destacam também a existência de uma agenda necessária de debate acadêmico a ser aprofundada em cada área de gastos e no plano da arrecadação federal.
O presente artigo está organizado em três seções, além desta introdução. A seção 1 apresenta uma breve trajetória sobre as mudanças de regras orçamentárias implementadas nas últimas décadas. Na seção 2 tratamos brevemente da composição da estrutura de receitas da União, evidenciando algumas características da política tributária nacional. Na seção 3 é analisada a evolução do financiamento das principais despesas e áreas de gasto da União. Por fim, as quatro dimensões expostas são retomadas e analisadas à luz dos dados apresentados e discutidos, incluindo brevemente a crise de financiamento ocorrida no país a partir de 2014 e as consequências da Emenda Constitucional 95/2016, que estabelece como teto das despesas primárias federais pelos próximos 20 anos o valor real observado no ano de 2016.
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