Descentralização (Entusiasmada) Brasileira por José R. Afonso publicado por AIFIL em coletânea de artigos em homenagem a Luiz Villela (2020).
“Luiz Villela era um defensor entusiasmado e apaixonado de todas as bandeiras que empunhava. Descentralização era uma das que mais lhe mobilizava. Tive a honra de trabalhar com ele em várias frentes em torno deste tema.
Nos conhecermos nos trabalhos da comissão de reforma tributária do Executivo em meados dos anos oitenta. Luiz já estudava o tema da renúncia de receitas e opinava nas análises das relações intergovernamentais. Começamos a trabalhar mais próximos em uma ampla pesquisa dos impactos sobre as finanças estaduais (equivalentes aos provinciais) e municipais na região do Nordeste da reforma tributária então recém aprovada pela Constituição de 1988. Não faltaram estudos, debates e conferências.
O embrião do fundo que mudou estruturalmente o financiamento do ensino fundamental nasceu de uma ideia de Luiz. No início dos anos noventa, a reforma fiscal foi estudada por diferentes abordagens pela Comissão Ary Oswaldo. Luiz e eu fizemos uma proposta para redesenhar as cotas-parte estaduais e municipais na contribuição social sobre o salário-educação, incidente sobre a folha salarial e que era rateada entre aqueles governos conforme a origem da arrecadação. Fizemos uma proposta, incluindo simulações, para mudar a fórmula de rateio de modo a considerar o número de alunos matriculados na respectiva rede pública. A sugestão foi ignorada para o salário-educação, mas acabou por inspirar uma mudança estrutural e radical na vinculação constitucional da receita de impostos para ensino fundamental. Barjas Negri, secretário executivo de Paulo Renato, Ministro da Educação do Governo Fernando Henrique, nos procurou para melhor compreender a proposição e adotou a mesma fórmula de rateio para o projeto de emenda constitucional que, em 1996, criou um fundo para financiar a valorização de professores do ensino fundamental – o FUNDEF.1 Depois, no Governo Lula, o fundo foi ampliado para o ensino básico – se tornou o FUNDEB, e até hoje prevalece à lógica de alocar recursos segundo o “per capita” apurado no Censo Escolar anual.
O Covid-19, que tragicamente levou nosso amigo Luiz e muitos outros brasileiros ainda irão, resgata a questão federativa para o centro da agenda brasileira. Marcante ficam as divergências entre Governadores e Prefeitos em oposição ao Presidente da República, que começou por ignorar e menosprezar a pandemia e depois passou a se opor às medidas sanitárias de distanciamento. Impasses também dominam a necessidade de transferências de recursos do governo central (o único que pode emitir títulos públicos) para os subnacionais. Mas o grande debate que se precisará realizar, com mais racionalidade técnica, envolve a organização do próprio Sistema Único de Saúde (SUS): não há como esta qualquer outra ação de governo tão descentralizada no Brasil, em termos de financiamento e, sobretudo, de execução.
Para enfrentar a pandemia, parece que o País ainda não soube tirar proveito de ter um sistema nacional e organizado de saúde pública em país de dimensão continental e com organização federativa. Não se deu até aqui prioridade necessária dentro do orçamento nacional para saúde, nem mesmo para as ações específicas de combate à Covid-19 diante de uma tragédia humana, social e econômica, anunciada e crescente.2 E por falta de prévio aviso3 e muito menos de apoio jurídico4 e, sobretudo, parlamentar,5 uma vez que o Congresso se manteve votando por tele trabalho – a ponto de até aprovar uma emenda constitucional6 para organizar o chamado “orçamento de guerra”.7
Essa rápida resposta judicial e legislativa não encontrou eco no efetivo gasto público. Houve uma lenta e insuficiente execução. Até 8 de maio, como informado pelo portal do Tesouro Transparente8, na ação denominada “Enfrentamento da Emergência de Saúde Pública de Importância”, a título de crédito extraordinário, foram previstas despesas de até R$ 23,7 bilhões, dos quais apenas R$ 6 bilhões tinham sido efetivamente desembolsados – ou seja, apenas um quarto do orçado nessa dotação especifica ou irrisórios 2,3% dos R$ 253,4 bilhões do total do orçamento da União para COVID-19.
A cena federativa é que demanda maior preocupação. São governos subnacionais que respondem por cerca de 95% da despesa pública com assistência médica e hospitalar,9 mas terão dificuldades para se financiar e funcionar diante do maior impacto da recessão sobre a sua arrecadação própria. O governo central é um grande financiador do SUS mas um irrisório executor.10
Aliás, não só para saúde, também a economia como um todo corre risco de colapso pela retração fiscal estadual e municipal porque, diretamente, governos municipais respondem por 46% e estaduais por 32% das compras de bens e serviços dos governos brasileiros, para consumo e para investimentos fixos (contra apenas 22% do governo central), o que agravaria ainda mais a inédita retração da demanda privada. Isto poderá formar um círculo vicioso, com o colapso dos serviços públicos locais agravando a recessão e derrubando ainda mais a arrecadação tributária.
É interessante contextualizar a descentralização brasileira numa comparação internacional. Na média da OCDE, governos subnacionais respondem por apenas 38% do gasto público nacional com saúde e já é considerado bem descentralizado pela aquela organização. Mesmo peso relativo na casa de 80%, como se constata no Brasil, só é encontrado na Espanha e na Itália, além de alguns países nórdicos na Europa – muitos organizados também de forma federativa. 11…”
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